Fome gula ou compulsão?
Quando alguém se alimenta e oferece aquilo que está comendo de forma educada e gentil, atendendo a uma convenção social, tende-se, na maioria das vezes, a agradecer o gesto e negar educadamente o alimento, utilizando-se de uma linguagem que atenda aos bons modos sociais e de conduta que norteiam a vida em grupo.
Esse padrão de comportamento se dá pela evolução da complexidade social que desenvolvemos como grupo e como seres sociais que somos, o que nos levou a mudar hábitos primitivos, graças à capacidade do ser humano em mudar padrões comportamentais desde que tomado de uma consciência sobre suas próprias demandas e diante do grupo em que está inserido.
Fica a pergunta: por que conseguimos rejeitar um alimento que nos foi oferecido gentilmente, estando naquele momento até com fome, mas não “morrendo de fome”, obviamente? Mas, em contrapartida, ao se sentar à mesa, ou assistindo televisão, seja após as refeições ou no meio da tarde e até mesmo de madrugada, algumas pessoas podem ser acometidas por uma voracidade que não tem relação com fome, mas com uma necessidade de se sentir cheio, pleno, como uma tentativa de preencher um “buraco”.
Por que a consciência falha na regularidade de uma dieta para perda ou simplesmente manutenção do peso, seja por motivos médicos ou estéticos? Por que o fato de implicar em uma exigência de disciplina e mudança de hábito gera, para algumas pessoas, um autoboicote?
A reposta mais simplista poderia ser a falta de força de vontade ou de “vergonha na cara”, ou ainda “por que faz isso com você?”! Estes podem ser os primeiros pensamentos que surgem dentre outros que se seguem para elevar a culpa e a autopunição. E, de repente, todo aquele esforço de se preencher o “buraco”, torna-se em vão.
A fome é, sem dúvida, um dos instintos mais primitivos do ser humano, não obedece a credo ou classe social, basta ver como as pessoas atacam a comida e até são desrespeitosas com as outras, não obedecendo a regra moral de conduta: que se deve deixar o outro se servir antes de mim, quando em uma festa a comida demora a ser servida, por exemplo.
Uma das primeiras explicações pode ser a alteração de humor e depois as verbalizações de insatisfação que se seguem, criando um campo para que a agressividade se instale e, caso haja qualquer coisa que fique entre a pessoa e a comida, os bons modos são deixados de lado, e se dá o “ataque” ao alimento.
Como alguns conseguem e outros fracassam no controle da fome? Talvez a resposta esteja nas estruturas de personalidade, aquela que as mãe sempre se perguntam, por que os filhos são tão diferentes mesmos criados da mesma forma?
Tal voracidade não é uma opção ou escolha, simplesmente é uma força maior que impede qualquer racionalização sobre o que está acontecendo naquele momento. Algumas pessoas, mesmo expostas a fatores como o ambiente e a ansiedade, podem não ser “ceder” ao descontrole frente à comida. A personalidade está intimamente atrelada à regulação de um comportamento, seja para estimulá-lo ou contê-lo, independe da vontade da pessoa, já que ela reúne uma gama de fatores imperceptíveis à consciência que determinam um certo padrão de comportamento.
A fome é um instinto primitivo potente, que ultrapassa, por vezes, a vontade humana de controlá -la. Pense em quando a criança está brava e, ao receber a comida, se acalma, como se “tirasse com as mãos” toda aquela birra e irritação. Sim, o alimento é um regulador do humor!
A gula já não é instintiva, pode-se entender como sendo aquela sensação e sentimento em continuar a manutenção daquele prazer quase orgasmático, de quando se está comendo algo que se aprecia, seja pelo aroma, textura, sabor ou pela forma.
A compulsão é uma força que não passa pelos níveis de consciência, ignorando todas as regras sociais, de conduta, apenas algo que vem e força o indivíduo a comer incessantemente, como uma tentativa de aliviar uma angústia, uma opressão, um vazio, algo imensurável e desconfortante que o atinge, levando-o ao impulso de que precisa comer para tentar acabar com tal mal que lhe acometeu. Ao final, após a breve sensação de satisfação, vem a culpa e a penalização pelo ato, e como que por algo inexplicável, todo aquele “buraco” que parecia estar cheio, “fica vazio novamente”, mesmo estando com o abdômen dilatado e racionalmente sabendo que não está com fome.
Por tantos fatores, atualmente, a obesidade, bem como as doenças atreladas a ela, tornaram-se um problema de saúde pública. Em tempos como os de hoje, a relação com a comida nunca foi tão perversa, já que ela é fator imprescindível para a subsistência. Nunca se pensou tanto nos impactos que a comida leva ao organismo como atualmente, seja pela ótica de que o alimentar-se tem que ser pensado para favorecer a manutenção da saúde e da estética, seja pelos males que o exagero e alimentos pobres nutricionalmente e hipercalóricos causam à saúde.
A mudança de hábitos alimentares é multifatorial, passa pelo autoconhecimento, pela nutrição e pela atividade física. A psicoterapia contribui para o entendimento das estruturas de personalidade, aumentando a consciência sobre si, pela simbolização da necessidade e pelo autorespeito sobre o seu próprio funcionamento psíquico, auxiliando a manutenção de uma alimentação saudável e atividade física.
Fabiano de Souza Botelho – CRP. 06-64397
Especialista em Distúrbios Alimentares e Obesidade/ Psicologia clínica.
Membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica.